No evento da premiação do Caruncho na AML, o poeta e designer Eme de Paula me fez uma pergunta muito preciosa que reproduzo, em parte, a seguir: “Sabemos que há coisas que não podemos mais tolerar, mas você acha que isso atrapalha o processo criativo de escrita? Essa busca por uma exatidão moral e política deixa o texto mais enfadonho ou previsível? Há espaço para os personagens cretinos?”. Respondi isso por lá, e acho até que já deve ter saído vídeo no youtube, mas gostaria de me demorar um pouco mais por aqui e ainda discutir com vocês sobre isso.
Uma das coisas que eu mais amo a respeito da ficção é o fato de que nela cabe tudo, além de ser um espaço seguro para pensarmos situações espinhosas em relativa segurança. A literatura nos vacina para a vida, ter a ficção antes dos fatos nos torna emocionalmente capazes, ao menos em teoria. A moralidade do que lemos e escrevemos está em troca com a moralidade do mundo. Podemos falar de qualquer coisa, qualquer personagem pode ser criado, qualquer situação pode ser descrita. Eu não gosto de colocar condições para a escrita, principalmente no que tange o desejo de criação de uma pessoa que começa a escrever, mas penso que se a linguagem precisa for encontrada para uma história, tudo realmente pode ser narrado em sua complexidade.
Entretanto, já estive diante de situações, durante preparações de originais e ateliês de escrita, em que textos diversos me causaram desconforto, ou propagaram ideias terríveis. Normalmente, o problema não é o conteúdo em si, mas a maneira como se aborda esse conteúdo. Há uma sorte de pessoa que escreve e não tem escuta para crítica, sugestões e avisos, buscando apenas louvações, e é praticamente impossível editar texto de gente assim. Os maiores problemas se repetem: personagens mulheres meramente instrumentais ou tratadas com misoginia, casamento infantil visto como normal, assédio a mulheres visto como coisa boa ou elogiosa, racismo disfarçado ou explícito, traição naturalizada, prostituição naturalizada, violência naturalizada, moralismo, pessoas pretas objetificadas ou animalizadas. Muitos personagens imorais são retratados como vítimas e frequentemente são os homens cis brancos representados como os pobre-coitados.
Os textos normalmente são rasos, mal escritos, não exploram todas as possibilidades, são autocentrados e possuem lógicas delirantes. Conversar gente que escreve esse tipo de conteúdo é muito difícil: defendem os textos, se agarram a ideias originais, tentam me convencer de que eu estou sendo purista, que a vida é mesmo aquilo. Percebo que quem escreve assim e não vê defeitos no próprio texto provavelmente é incapaz de ver a vida de forma multifacetada. Entretanto, não dá para criar um personagem canalha que não convence como canalha (mas como vítima) ou cuja moral invertida é colocada como correta ou perfeita dentro daquele universo ficcional, sem espaço para a discussão de seus feitos e defeitos. O problema está na execução do texto e em sua transmissão: essa má ficção não deixa espaço para quem lê, dominando a ética e tentando convencer o leitor que o conteúdo narrado é o moralmente certo.
Vira e mexe leio livros publicados e que me incomodaram muito. Não vou citar nomes (não nomeio publicamente o que acho que não deve ser lido), mas já tive acesso a um livro de linguagem péssima, retratando a vida de uma mulher branca que infelizmente sofre misoginias, cujo narrador faz uma piadinha de um racismo brutal a respeito de certas mulheres negras que trabalhavam com essa mulher (usando um termo horrível que não vou repetir), ou o mais frequente: livros escritos por homens em que as mulheres são meros acessórios. Achei horroroso, por exemplo, a narrativa meio ficcional, meio real, de um homem que vai acompanhar a própria mãe a um procedimento médico por causa de uma violência de seu pai. O infeliz desse personagem expõe mais da própria história e das próprias condições infelizes do que fala da mãe hospitalizada. Ou seja, a violência cometida contra a mãe é apenas uma desculpa para ele choramingar sobre o próprio destino de maneira muito rasa. São livros que não dão espaço para que exista um outro.
Por outro lado, eu amo personagens canalhas. Machado de Assis é bem especialista nesse gênero. O raciocínio de Bentinho de Dom Casmurro é uma caracterização impecável de um homem médio, cuja mente foca apenas em si mesmo e, por ser incapaz de enxergar o outro, caindo numa prisão mental dificílima. Adoro A pediatra da Andréa Del Fuego, uma vingança para mim, que dou um azar danado com médicos, uma classe que defende a si mesma mesmo depois de ser racista, machista, gordofóbica e contra a ciência que deveria guardar. Por bastante tempo eu amei fazer o meu maestro egoísta, orgulhoso e sem nenhuma autocrítica no meu Caruncho (entretanto, quando terminei de escrever, eu estava péssima, com raiva desse homem, tendo ataques de misandria e na necessidade de fazer um livro que retratasse um homem bom). Leio Michael Houellebecq com prazer e dúvida: me incomoda muito a islamofobia de Submissão, mas a ideia justamente é criar um personagem canalha, e há um perigo de achar que os franceses engolidos pelo Islã são vítimas no livro, enfim, o que é uma leitura muito errada, que diz muito sobre o autocentramento colonial desses leitores.
Já disse que não gosto de receita de bolo para fazer ficção, mas acho que temos que ter cuidado e inteligência na caracterização dos cretinos. É uma tarefa difícil. A linguagem de um cretino não pode ser preguiçosa, mas bem trabalhada, deixando ver suas lorotas, seus defeitos e suas tragédias que escapam nas entrelinhas. Para ser canalha de uma maneira ótima, é preciso que o texto seja plural, multifacetado, que os personagens não sejam apenas heroicos ou trágicos. Por páginas e páginas de Dom Casmurro, Bentinho tenta nos convencer de sua tragédia e alguns de nós somos realmente convencidos de que ele é uma vítima. Entretanto, a resposta para o drama de Bentinho é justamente a contemplação desse personagem multifacetado, sofredor e, sim, cretino. Isso cabe a qualquer tipo de personagem, plano, redondo ou meramente instrumental.
Acho que chego a uma conclusão prévia por aqui: para criar um personagem canalha, é preciso deixar espaço para o leitor. É preciso que essa pessoa que vai ler possa ter muitas opiniões, e que a narração não busque nos convocar explicitamente a tomar um ponto. A literatura não pode ser escrita em pedra, não precisa nos convencer de nada, mas é preciso criar um mundo em que não existe apenas uma resposta para um problema, mas que ele esteja exposto em sua complexidade, em sua humanidade, em sua terrível dúvida. É preciso que o pensamento do outro faça parte do livro.
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Ainda essa semana, vou participar de dois eventos e convido vocês.
O primeiro, Presidentes carunchados, com a minha amiga pessoal, Bruna Kalil Othero, essa pessoa pura-impura, na livraria Jenipapo. Vamos falar dos nossos personagens canalhas e de outros projetos. Dia 17/11, na R. Fernandes Tourinho, 241, 18h.
E no fim de semana começa o FLI-BH, com uma programação incrível no CCBB, Praça da Liberdade. Estarei com a espetacular Lilia Guerra, um privilégio absoluto, e conversaremos com mediação da Cecília Castro. Será no auditório 1, 3° andar, no 18/11, 18h30. O tema é: que história precisamos e desejamos contar?
E quando a gente tem dificuldade de escrever sobre mulheres, mesmo sendo uma mulher? Eu acho mto mais fácil dar vida a personagens homens, acho que vou levar isso pra análise hahaha!
Adorei a reflexão, Laura! "é preciso criar um mundo em que não existe apenas uma resposta para um problema, mas que ele esteja exposto em sua complexidade, em sua humanidade, em sua terrível dúvida. É preciso que o pensamento do outro faça parte do livro." Obrigado pelo texto :)