1. Tenho uma grande crise de escrita: tem algo errado no meu texto, estou tão cansada, não consigo enxergar o que é. Eu me culpo: deveria ser a dona, a senhora da minha escrita, deveria dar conta de antes terminar o livro e então buscar interlocução. Não dou. A torre se torna ruim, mostra seu lado sem luz e desesperançado no isolamento. Na segunda-feira, tive um ataque de pelanca (expressão maravilhosa ensinada pela minha amiga Nayara Noronha) e o Davi falou: olha, escrever é algo sim que se faz sozinho, mas acho que você está sozinha demais.
2. Estou escrevendo esse livro há anos e isso me dá medo. As ideias surgem para ele muito lentamente, por mais que eu me force e faça pesquisa à beça. Passo por outra crise: vou publicar um romance nesse semestre, chamado Duas línguas e considero esse livro a melhor coisa que já escrevi na vida. Na minha memória, o Duas línguas foi fácil de escrever, e escrever ele foi algo que fiz na pandemia para sobreviver psiquicamente (sem dúvida, escrita para mim é salvação — pode não ser para todo mundo, mas para mim é). Entretanto, uma memória verdadeira trai essa memória mentirosa: eu me lembro de ter pensado comigo que não ia dar conta de cuidar de cabelo comprido, viver uma pandemia e escrever um romance difícil, tudo ao mesmo tempo. Peguei a tesoura, o cabelo foi embora. Escrever Duas línguas foi difícil, chorei de cansaço tantas vezes, mas não me lembro, só lembro do prazer de escrever a história e do prazer terminá-la. Nesse novo-velho livro, o prazer aparece só quando estou muito concentrada. O trabalho parece ser ainda maior.
3. Tem uma regrinha muito importante no meu ateliê de escrita: não comparar qualitativamente. Não pode: falar que o texto de fulano é melhor que o meu, ou que ele escreve melhor. Entretanto, eu estava fazendo isso comigo mesma: comparando qualitativamente uma escrita de antes com uma escrita de agora. Não serve para nada. Podemos comparar processos: estou achando esse livro difícil. Mas qual não foi? E qual a dificuldade?
4. A solidão da torre é uma cilada. Eu escolhi essa solidão, e tenho que ceder que ela foi ótima, eu precisava passar por isso. Me concentrar, me conectar com a história, fazer o trabalho braçal. Até que veio o surto, e acho que o surto é supernormal para quem escreve. Estava faltando alguma coisa naquela história. Eu não estava mais sentindo prazer. Mas como sair? Além disso, eu estava sentindo que não tinha um conflito no início daquele texto, e que eu precisava puxar esse conflito para cá. Mas como? Quem colocou esse problema em palavras e me auxiliou a chegar numa solução foi a Malu Grossi Maia, amiga-autora-aluna com quem troco muito, que leu as primeiras quarenta páginas e disse: tem conflito faltando, uma voz faltando, quero ouvir a voz de outra personagem. E de dois narradores, o livro passou a ter três vozes. Sugeriu, também, mais camadas para um dos narradores. É o início de uma resposta.
5. Antes, eu tinha mostrado o original para o Davi, meu companheiro, e uma das dádivas de se morar com artista é justamente contar com essa resolução rápida e gratuita de problemas. A conversa com ele me fortaleceu no sentido que o livro tinha menos problemas do que eu pensava ter. Indicou flutuações de linguagem, ciladas musicais e me deu caminhos. Nesse momento da minha vida, estou com uma política: não leio originais se eu não for paga para isso e não deixo que leiam meus originais sem receber. Daí, contratei a Ísis Biazioli, uma amiga pianista muito incrível que simplesmente destrinchou o livro comigo e me deu uma AULA de música que valeu por anos de pesquisa musical. Se vocês elogiam minha pesquisa na publicação dos livros, vejam, eu conto com os melhores, os mais geniais, é uma dádiva. Estou feliz de novo. Estou pronta para recomeçar.
6. Terminei esse percurso de leituras-amigas na sexta, absolutamente faminta e cansada. Almocei, deitei na cama e dormi mais de duas horas seguidas, apesar de ter dormido direitinho na noite anterior. A exaustão da escrita é terrível, é real. Igor, essa semana, me mandou uma mensagem dizendo que tinha acabado de escrever um livro: “Hoje o dia foi difícil… não consegui me concentrar em nada e nem fazer nada depois que terminei o manuscrito do livro. Uma loucura… Passei até um pouquinho de mal de tarde e tive que deitar”. No momento, estou tomada por um cansaço emocional, que meu amigo Igor partilha. Bom poder descansar junto, também.
7. Na manhã seguinte, acordei com feridas de herpes no lábio inferior.
*notícias da torre: Em janeiro, pude não trabalhar para fora para ficar apenas escrevendo, encerrada na minha torre de marfim. Essa é a quarta notícia desse processo publicada aqui na newsletter.
p.s.: seguem abertas as inscrições para o nosso ateliê de escrita, são as últimas vagas. Para se inscrever, basta escrever para estrategiasnarrativas@gmail.com