1.Eu não tinha o plano de terminar de escrever uma coisa nesse meu mês de torre, mas escrever o que desse vontade de escrever: romances, poemas, ensaios, contos. O mês na torre também é um mês de leitura e eu estou me jogando bastante em literatura japonesa escrita por mulheres e o incrível-porém-não-tão-lido Arthur Schnitzler. Dessa literatura, tiro sempre algo para a minha literatura. Marco as horas no cartão de ponto: escrevo de duas a quatro horas por dia. Varia muito de dia para dia, às vezes um dia produtivo puxa outros, às vezes estou exausta e só quero ler. Às vezes penso no livro o dia inteiro e não escrevo uma palavra. O trabalho silencioso.
2.Existe um mito que assombra os processos criativos, de que é preciso terminar de ler/escrever o livro X antes de iniciar a escrita/leitura do livro Y ou Z, sendo que o desejo da escrita/leitura é muito flutuante e é necessário fazer pausas. Se está chato escrever o livro X, se não está rendendo, talvez o melhor seja deixar X um pouco de lado (sem que isso signifique um abandono ou um fracasso, apesar de doer) e ir em direção a Y ou Z. Romances são seres inanimados, não são filhos, não cobram atenção: tenho que me convencer disso, quem faz o romance sou eu, e não o contrário. Porque há uma ilusão muito real de que nós perdemos o controle da coisa, e eu acho essa perda de controle uma delícia, poder se entregar a ela, como se o pensamento não fosse nosso, mas de um segundo que nos habita. E para ir para a deliciosa perda de controle narrativa, eu não posso me preocupar em fazer alguma coisa só porque é preciso concluir. Preciso que flua, e se houver o silêncio, melhor respeitar.
3. Tem um texto muito debochado e muito sério do Roberto Bolaño chamado Conselhos sobre a arte de escrever contos, em que ele diz que, agora que tem 44 anos, pode dar alguns conselhos sobre o conto. Acho interessante esse marcador: 44 anos, não quer dizer nada, mas nessa idade ele se sentiu autorizado a dar conselhos. Me divirto enormemente com os três primeiros conselhos: “Nunca aborde os contos de um em um, honestamente, você pode estar escrevendo o mesmo conto até o dia da sua morte”; “melhor escrever os contos de três em três ou de cinco em cinco. Se você está com energia o suficiente, escreva-os de nove em nove ou de quinze em quinze”; “Cuidado, a tentação de escrevê-los de dois em dois é tão perigosa como se dedicar a escrever de um em um, mas leva em seu interior o mesmo jogo sujo e pegajoso dos espelhos amantes”. No ateliê de escrita, eu vejo muito o pessoal se torturando em torno de um texto só, e às vezes ficando anos nesse texto, sem prazer e sem avanço: uma prisão, uma morte. Acontece comigo: o romance que escrevo agora comecei em 2021, mas tem ideias que carrego desde 2013, em esboços. Tem esse tempo esticado, tão incompatível com a vida humana: se eu não tivesse saltado de um livro para o outro, eu não teria escrito nada, mas ficaria com os pés na lama amorfa das ideias imaturas.
4. Igor me manda uma mensagem, está transformando um livro narrativo, escrito há alguns anos, em um livro de poemas. Toda literatura é metamorfose tanto no enredo quanto na produção. O romance que escrevo agora começou como alguns exercícios, alguns desejos. Eu queria escrever uma situação utópica, porém muito possível (não aguento mais distopias), queria também estudar a forma e a narração de Cães Negros do Ian McEwan, um dos meus romances preferidos da vida, queria aproveitar as ideias de 2013, e queria também escrever sobre a Sagração da primavera, de Stravinsky, sobre o sacrifício, sobre a dança da morte. Tive que abandonar desejos iniciais, mudei a forma do livro, cortei uma introdução, passei de um narrador para três narradores, talvez quatro narradores. Experimento linguagens, escuto o que o texto tem a me dizer.
5. Sobretudo, a diversão: no meu aniversário, ganhei de presente de amigas cadernos e canetas. Achei interessante essa escolha de presente: Ana Maiolini, amiga, aluna e poeta, me deu um kit de volta às aulas com estojo, post-it, caneta, borracha. E um flamingo azul que acende uma luzinha. Igor, há uns anos, me mandou uma entrevista com a Donna Tartt, escritora cuja obra adoro e detesto em medidas iguais, e nessa entrevista ela justifica sua demora para escrever romances, que saem de dez em dez anos. Ela diz que tentou se apressar, mas perdeu o prazer na coisa. Nos dá o bordão: no fun for the writer, no fun for the reader (sem diversão para o autor, sem diversão para o leitor). É isso que me guia.
*notícias da torre: Em janeiro, pude não trabalhar para fora para ficar apenas escrevendo, encerrada na minha torre de marfim. Essa é a terceira notícia desse processo publicada aqui na newsletter]
p.s.: para quem quiser fazer ateliê comigo, as inscrições estão abertas para fevereiro. Abaixo, mais informações.