No ateliê de segunda-feira, eu dei a algumas alunas a tarefa de criarem personagens. Dei o exercício assim, na vagueza e na irresponsabilidade: criem um personagem. Até que uma aluna me perguntou: e como eu faço isso? No quente da aula, respondi: inspire-se numa pessoa na qual você está apaixonada. Eu poderia também ter dito: baseie-se em alguém que você odeia. Foi uma instrução imprecisa e eu gosto de profundidade. Senti que eu precisava falar um pouco mais disso. Esse texto é para vocês, minhas queridas.
1. William Faulkner disse numa entrevista que escrever um romance era simples: bastava criar um personagem e seguir esse sujeito por aí. Nisso, ele coloca a criação do personagem no centro da narrativa, como eu mesma gosto de fazer. Às vezes realmente parece que o personagem tem vida própria: ele faz o que quer. Com frequência na prática de ateliê vejo a parte da autoria sendo dominada completamente pelo desejo autônomo dos personagens, que parecem existir para além do nosso desejo, como se fossem uma parte do nosso inconsciente ganhando asas. Outro dia, enquanto escrevia um personagem, ele disse: meu marido. Só assim descobri que se tratava de um homem gay, casado, lá com seus quarenta anos. Não tinha planejado nada disso.
2. Mas de onde nascem os personagens com essa autonomia? Estou lendo o genial A obrigação de ser genial da Betina González e ela defende no ensaio O coração na página que no início de todo texto há uma emoção. Mesmo que o texto seja puramente ficcional, ele parte de uma emoção humana verdadeira, verdadeira até mesmo em seu fingimento (o poeta é um fingidor etc, como escreve Pessoa). Ela diz: “a emoção é o fato misterioso do ato criativo. Talvez por isso não seja um tema frequente nos tratados de escrita ou nos festivais literários. Também não é bem-vista pela crítica, que acha suspeitos os assuntos do coração. E encontro poucos escritores que se referem diretamente ao assunto, o que é surpreendente, dado o papel que ele ocupa na escrita e na leitura. Por acaso a emoção não está no impulso que nos move para a página, que nos leva a narrar o que vivemos ou imaginamos?”. Personagens têm, portanto, emoções - talvez a história se narre em uma emoção central desse personagem. Quantas narrativas não são movidas pela melancolia? Pelo luto? Pelo desejo de vingança? Pela traição?
3. Meus personagens nascem claramente de emoções, mas também nascem de desejos. Quando criei a Matê do Canção sem palavras, me baseei na experiência de não me entregar às minhas vocações, mas duvidar delas: Matê é profundamente ancorada em emoções pessoais, mas nada na história dela se assemelha à minha, nem mesmo as opiniões dela se assemelhavam às minhas. Quando criei o maestro do Caruncho, eu estava tendo que conviver com muitos homens escrotos, autoritários e egoístas, e foi a partir do meu sentimento de raiva e vingança que os criei; a violoncelista, por sua vez, foi feita a partir do meu desejo de desistir de uma carreira (eu, das letras clássicas, ela, a música), mas ao mesmo tempo havia um desejo de criar alguém totalmente oposta a mim, uma vez que eu estava em um estado sério de sofrimento mental e de saco cheio de mim mesma enquanto escrevia. B, o personagem de Duas línguas, é um dos meus preferidos: ele surgiu do desejo de criar um homem bom, uma vez que criei um homem muito mau no Caruncho. Precisava passar um tempo com a doçura e a inocência desse homem bom, B, e acreditar que um bom romance nasce também de emoções cálidas.
4. Personagens também nascem de histórias, de pessoas, de fatos. Sandra, de Duas línguas, é inspirada em muitas amigas, assim como Martin é inspirado em muitos amigos. O enredo de Duas línguas foi profundamente ancorado em histórias que ouvi da boca das pessoas a quem dediquei o livro, e o espírito dessas histórias é a vida dos personagens. Foram áudios e mais áudios de whatsapp contando histórias, horas ouvindo e transcrevendo o programa de rádio Violão com Fábio Zanon; das palavras das pessoas, surgiram os personagens. Natália Ginsburg no texto Meu ofício, no livro As pequenas virtudes, escreve: “Como tinha descoberto a existência de personagens, parecia-me que ter um personagem bastava para fazer um conto. Assim eu andava sempre à cata de personagens, olhava as pessoas no bonde e pelas ruas e, quando topava com uma cara que me parecia adequada para figurar em um conto, tecia em torno dela particularidades morais e uma pequena história. Também buscava detalhes sobre a vestimenta e o aspecto das pessoas, ou sobre os interiores das casas e outros lugares; se entrava em um aposento novo, me esforçava em descrevê-lo no pensamento e tentava achar algum detalhe miúdo que combinasse bem num conto. Mantinha um caderninho no qual escrevia certos detalhes que eu ia descobrindo ou pequenas comparações ou episódios que me prometia inserir nos contos”.
5. A personagem é feita de linguagem. Nós, seres humanos, nos constituímos como sujeito através da linguagem, essa mesma linguagem que nos constitui serve para a escrita (por isso às vezes parece que a gente está pegando pedaços do nosso corpo e botando no texto). A literatura é feita de linguagens que constituem sujeitos, que são personagens. Uma forma de falar, uma forma de pensar usando as palavras, cacoetes, frases feitas: pode-se assim construir uma personagem, assim a personagem ganha sua autonomia.
6. Na literatura contemporânea existe o império do personagem redondo, a regra de que personagens devem ter muitas camadas, e eu não gosto disso. Deveríamos também considerar o personagem plano, o personagem alegórico. Dois exemplos disso na literatura: em O presidente pornô, Bruna Kalil Othero cria Bráulio, o presidente, construído a partir de muitos presidentes, ele se torna o presidente zero, sem camadas, apenas ação – e é brilhante, alegórico em sua relação com a história da república, um grande teatro de marionetes que nos tira ótimas risadas. O texto não perde qualidade por essa decisão da autora, na verdade o enredo é potencializado. Em A cilada, Otto Lara Resende escreve a vida de um avarento completamente sem camadas e cheio de lugares comuns. É um texto excelente que termina em uma deliciosa punição do destino. Gosto muito de um livro de Cesare Ripa, chamado Iconologia, publicado no fim do século XVI: nele, o autor perusiano, busca recolher e representar imagens ditas “universais” (ah, o renascimento!) e mostrar a maneira correta de ilustrá-las tanto na poesia como na pintura. Nós, contemporâneos, entendemos isso de outra maneira, uma vez que temos uma sede pela autenticidade ou pela originalidade. Inclusive, as imagens do livro são gravuras: clichês, repetidas, reimpressas. Todas as alegorias tem como base um corpo de mulher (típico do homem renascentista: a mulher como figura moldável, o homem, não), “O homem é a medida de todas as coisas”...
Assim, deixo três exercícios para vocês:
Crie um personagem para se vingar de alguém (uma pessoa ou mais). Crie uma personagem inspirada no seu amor por alguém.
Copie a linguagem de uma ou mais pessoas, transcreva o que dizem e crie personagens a partir disso.
Escolha um sentimento, uma virtude, uma característica, uma alegoria e baseie uma vida em torno disso.
Boas escritas!
Muito honrada em ser citada nessa news como referência <3 concordo super com você que estamos vivendo o império dos personagens supostamente "cheios de camadas" mas que às vezes são mais superficiais do que personagens planos bem feitos. Ultimamente tenho encontrado muita obviedade nessas "camadas", uma característica aliás que personagens planos bem construídos não têm (veja os tarados do Nelson Rodrigues, por exemplo --- são planos com orgulho, mas jamais são óbvios)