Meu amigo, o quadrinista e escritor Pacha Urbano, tem uma regra pétrea em seus cursos de roteiro para quadrinhos: todas as narrativas devem acontecer no Brasil e ter referências brasileiras. A princípio, isso pode até parecer de um nacionalismo bobo e até mesmo antiquado, mas há no exercício um pulo do gato sensacional que tem a ver com as referências que habitam (e colonizam) o nosso imaginário.
Os alunos do Pacha querem escrever quadrinhos. Muitas vezes, essas pessoas têm como guia apenas filmes, HQs e objetos culturais estadunidenses ou europeus. Mesmo com a regra, Pacha me relatou que seus estudantes colocam em cena personagens fazendo bacon, ovos e panquecas no café da manhã, acendendo cigarros com isqueiros zippo ou fósforo de papelão igual dos motéis filme gringos, criando geografias com prédios novaiorquinos, usando construções frasais que são obviamente traduções do inglês. Pacha sugere aos alunos: colocar pão com manteiga e café no copo de requeijão no desjejum, acender cigarros com um isqueiro bic e observar a nossa própria arquitetura. Esses elementos do nosso cotidiano também são um belo assunto, um belo cenário possível para o nosso imaginário. Algo que está perto e tem potência infinita.
Não estou criticando o consumo de material estadunidense, mas justamente a repetição impensada desse cenário: por que usaríamos tais coisas se elas não fazem parte do nosso cotidiano? Quando isso acontece, fico pensando numa bela fala da Chimamanda Ngozi Adichie: o perigo da história única, em que ela relata que, quando era criança, os personagens de seus livros infantis sempre comiam maçãs e comentavam sobre o tempo, então ela escrevia histórias com personagens comentando o tempo e comendo maçãs. Só que Adichie é nigeriana, cresceu comendo mangas e o tempo na Nigéria é sempre mais ou menos o mesmo, de forma que ele não chega a ser um assunto. No entanto, as referências culturais que ela recebia eram outras, importadas, de livros ingleses. Nisso, a autora fala como é necessário contarmos histórias variadas e tratarmos um assunto com multiplicidade, a fim de não alimentarmos o preconceito na ficção. A história única sobre um povo, uma nação, uma cidade e seus hábitos culturais pode significar uma morte nos seus infinitos sentidos.
Já tive, também, alunos que não gostam de ler literatura brasileira e que adoram dar nomes estrangeiros aos seus personagens. Suas cenas acontecem em castelos medievais, há homens loiros e mulheres ruivas de olhos verdes, ou em subúrbios com gramados verdes que são aparados com afinco. É interessante como sempre são pessoas de fenótipos europeus ou estadunidenses, como se eles valessem mais ou fossem a única possibilidade. A minha solução tem sido pedir justificativas para esses tipos de decisão (“por que esse gramado e não uma roseira?”, “por que esse personagem se chama John?”) e indico autores brasileiros com alguma insistência, buscando criar uma crise no imaginário.
Sofro, sim, de uma eurofilia, admito. Amo a música clássica europeia, a literatura em língua alemã, as séries policiais da BBC. O espaço de fora sempre me encantou, a ponto de eu ter crescido numa extensa síndrome de vira-lata, que pode atingir qualquer artista do Brasil. Boa parte dos meus livros acontece em países estrangeiros (que muitas vezes são sequer nomeados), todos os livros envolvem alguma viagem. No entanto, entendi que faço esse deslocamento justamente para criar a sensação de estrangeiro nos meus personagens, uma vez que um dos temas que mais me consomem é ser o outro, o estranho, o não-pertencente, um brasileiro fora, descobrindo finalmente que significa ser brasileiro no contexto mundial, batendo a cara no muro. Ser alguém de uma identidade em outro espaço é uma experiência literária e estética por si só: sentir falta da comida, estranhar hábitos, a língua. Estranhar...
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A minha conversa com o Pacha começou quando eu estava montando a oficina Terrores, horrores e mistérios latino-americanos, descobrindo as maravilhas do medo pelo nosso continente. Nessa oficina eu uso a regra de ouro do meu amigo: elementos brasileiros, personagens brasileiros, lugares-comuns brasileiros. Acho que minha percepção do terror na américa-latina e no Brasil se iniciou quando eu li os contos assustadores, esquisitos e engraçados da Silvina Ocampo, e quando eu descobri que o Machado de Assis tem alguns contos de terror (se possível, se deliciem com o conto Sem olhos).
A investigação me fez chegar ao projeto tenebra.org e ao livro Tenebra: narrativas brasileiras de horror (1839-1899) e descobrir que o gênero de terror no Brasil existiu e existe, mas passa por um sufocamento por não ser considerado “nacional o suficiente”, mas uma cópia do que era estrangeiro: “a crítica e a historiografia literária brasileira sempre demonstraram preferência por obras literárias realistas que versassem diretamente sobre as questões sociais e políticas de maior relevo, bem como aquelas que abordassem a discussão sobre o que é o Brasil e o que somos nós, brasileiros”, colocam os organizadores Júlio França e Oscar Nestarez. A valorização da tendência documental e realista nos fez perder um pouco a fantasia e a imaginação no contexto literário do romantismo e do modernismo. Mas o medo não é um sentimento humano? E no contexto brasileiro, onde houve e há as mais terríveis violências, escravidão, desigualdade, colonização, isso não é um terror por si só?
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Vou dar uma segunda versão da oficina Terrores, horrores e mistérios latino-americanos, agora online. Será às quartas de agosto, 19h-21h. Para produzirmos nossos próprios textos de terror locais, vamos ler os brasileiros Machado de Assis, Murilo Rubião, Flávia Péret, Otto Lara Resende e Lygia Fagundes Telles, o peruano Julio Ramón Ribeyro, as argentinas Silvina Ocampo e Samanta Schweblin, entre outros hermanos. Para se inscrever, basta clicar aqui.
E o fantástico de apostar na brasilidade como material de referência para a produção artística ficcional, Laura, é que uma vez provado, a pessoa aprova e dificilmente abrirá mão da caixa de ferramenta que é olhar para sua cultura, seu lugar de pertença, para os seus, com olhar estrangeiro, de estupefação. Só enriquece nosso trabalho e abre portas e janelas na nossa cabeça.
Amei, Laurete! Muito legal vc ter trazido todas essas questões pra gente pensar.
Bjo (Carina)