Car’alun’, *
Da última vez que nos falamos, você disse que queria escrever textos curtos justamente para praticar mais a escrita. Existe, na disciplina da escrita criativa, essa ideia de que o conto seria uma forma mais breve de escrever, portanto ele seria mais indicado às práticas em conjunto, e seria uma espécie de treinamento para o romance. Acho esse um dos maiores erros que a disciplina cometeu, uma vez que a única semelhança que consigo apontar é que contos e romances são teoricamente em prosa e são narrativos (há contos e romances em verso, veja bem, e contos e romances que não narram nada).
Cada gênero — e cada texto! — tem a sua própria dificuldade, seu próprio desafio e sua própria natureza. Eu tenho uma certa facilidade para escrever romances, mas acho escrever conto um negócio dificílimo: tenho que colocar todas minhas ideias em um espaço curto, não posso entregar toda a história, nem desenvolver demais os personagens etc. Assim, tenho uma admiração imensa por pessoas que escrevem curto. Gosto de escrever histórias que criam tentáculos, que se espalham: para mim, é a liberdade e o compromisso com a narração. Eu sinto que você não tem se libertado tanto na sua escrita, que você se encontra preso em muitas ideias feitas, como se para antes de escrever uma coisa boa, você precisasse seguir um manual: primeiro contos, depois romances. Não: escreva o que você tem vontade. E por mais que existam tais manuais, essa não é uma metodologia confiável uma vez que foi criada por outra pessoa, e não pelo seu próprio desejo, ao qual você parece cegado. Antes dos manuais, das técnicas, é preciso que você entenda o que te provoca, o que te faz querer escrever, o que você tem a dizer nesse mundo.
Existe uma diferença entre dois desejos: “quero ser escritor/escritora” versus “quero escrever”. O primeiro tem a ver com imagem, aparência, aprovação social, em suma, é sobre o lugar que você ocupa na sociedade; às vezes ser escritor é um lugar de destaque intelectual — às vezes é um lugar maldito. O segundo tem a ver com um ofício, algo que se faz. Claro que para ser o primeiro, é preciso passar pelo segundo. Há quem paguem para que terceiros façam esse ofício da escrita para você, os ghostwritters. Se você tiver recursos e desejar mesmo ser um escritor sem passar pelo ofício, esse é um caminho mais rápido, mas nele você perde a diversão e o senso de trabalho.
Às vezes as pessoas se perdem entre as duas funções de escritora/escritor e pessoa que escreve. Eu, de início, apenas queria escrever. É óbvio que eu queria ver meu trabalho publicado, mas eu vi no hábito da escrita uma espécie de salvação: eu me sentia realizada, eu colocava meu pensamento no lugar. O lugar da escritora como autoridade intelectual ainda é incômodo para mim. Eu não quero ser uma pessoa que detém um conhecimento sem compartilhá-lo. Por isso gosto tanto de estar com vocês em sala de aula. Você pergunta: por que escrevo? Eu só escolhi a escrita depois de ter começado a escrever, e de entender que ela me dava alguma razão (em vários sentidos: razão de viver, razão contra a loucura). Eu tive e tenho muito medo da escrita, de sua potência infinita. Mas escrevo porque arte é algo que os seres humanos fazem e eu queria ser um ser humano.
Escreva primeiro. Escreva seu mau-humor, seu medo, sua fantasia, sua vida, seu ódio. Você diz que quer escrever coisas belas e otimistas, entretanto, acho que a gente não tem o direito de escolher nossa escrita por completo. A gente precisa deixar que a escrita aconteça de maneira mais descontrolada que pudermos. Uso o clichê de Freud: o eu não é mais senhor em sua própria casa — quem escreve não jamais foi senhor da própria página. Além dos nossos desejos, existem milhões de coisas que influenciam nossa escrita: o tempo, o fôlego, a ansiedade, a paciência, as influências, pesquisas, leituras recentes e antigas, os acontecimentos. Há sempre pessoas que chegam com esse mesmo desejo: escrever como Clarice Lispector, por exemplo. Mas Clarice infelizmente está morta, a obra está completa, e só temos você, que vive. Temos que nos contentar com isso.
Por último, você me disse que acredita não ter uma técnica ainda. Para desenvolver uma técnica é preciso escrever. A técnica não é um pressuposto, ela não vem antes da construção. A técnica surge num mergulho na feitura: ela não é a roupa de mergulho que você usa para mergulhar. A gente não se prepara para a técnica, a gente se prepara para o fazer: fazendo. Você conhece o mote do nosso ateliê de trabalho: comece a escrever escrevendo.
Não existe técnica universal (não se aprende o romance escrevendo contos...), ela é completamente individual, a técnica universal não dá conta do indivíduo. Eu mesma ando passando por uma dificuldade: estou em busca de uma linguagem, de algumas linguagens. Leio, leio, escrevo, não encontro. Já se foram mais de cem páginas e meus novos escritos ainda não têm rosto. Toda vez que se inicia um projeto novo, precisamos inventar uma nova técnica. Há também autores que encontraram uma linguagem e seguem nela por toda uma obra (como o nosso queridinho Thomas Bernhard), e isso é algo possível e bom. No meu caso, fico entediada ao me ver repetindo recursos. Você precisa saber o que você quer: isso também é a técnica.
Se posso dar conselhos, não espere nada de sua própria escrita. Não espere: apenas queira. Não espere ser moral, não espere causar alguma coisa em alguém, não espere emocionar. Deixe que o texto escolha as próprias causas, no início. Você não é ninguém diante da vontade — que bom. É preciso abrir mão, soltar, realmente.
Como para casa, aconselho a leitura do poema “Procura da poesia”, do Drummond. Às vezes ele é meio caga-regra, mas são as regras dele. Você pode fazer as suas.
Atenciosamente, com desejos de sucesso,
Laura
* Há algumas dúvidas e questões frequentes que aparecem no ateliê de escrita e nos meus atendimentos individuais. Quero fazer um quadro de cartas aqui falando dessas questões de uma forma geral, me referindo a uma pessoa imaginária, esse alun’ sem gênero marcado (principalmente porque é uma figura que concentra várias pessoas). Ora, porque prefiro isso a escolher uma palavra teoricamente sem gênero, como estudante? Porque acho a etimologia da palavra aluno muito bonita. Ao contrário da etimologia delirante que está na boca das pessoas (aluno seria “sem luz”), aluno vem do verbo alo latino, que significa alimentar, nutrir, fazer crescer, desenvolver. Queremos alimentar a escrita. Dedico essas cartas a quem divide a sala de ateliê de escrita comigo, e digo que elas são escritas em diálogo com meu companheiro, Davi Avansini, que também é professor de arte.
✨✨🔥✨✨
Excelente