Era uma aula em que apresentaríamos alguns poemas e o professor era meu amigo. Quando chegou a minha vez de ler, ele quis pular: “posso ficar duas horas com você lendo seus poemas depois, em vez de usar o tempo da turma”. Falei que não, que preferia que a turma também pudesse comentar meus poemas, afinal, para isso tínhamos uma oficina com mais participantes.
Lembro de ter enviado poemas que eu não considerava muito bons, mas justamente porque eu queria entender o que havia de errado com eles. Então ele começou a comentar e foi uma desgraceira. A primeira coisa que ele disse foi: “Laura, você é romancista, você já tem uma linguagem na prosa, mas na poesia você não tem linguagem ainda, é algo que você precisa construir”. Parece uma crítica construtiva, mas não foi. Ele ia falando dos poemas — de forma superelegante, claro, porque aqui estamos com um intelectual — e botando abaixo o que eu tinha feito sem propor nenhuma solução.
Acho algumas destruições fenomenais, fazem a gente recomeçar com alegria de cavalo jovem, mas fala dele só serviu para me fazer achar que eu não era poeta, que poesia não era para mim e que eu devia gastar meu tempo com a prosa, que era a minha grande coisa. E veja: sou a professora de escrita que vai ficar tentando convencer todas as pessoas de que literatura, independente do gênero, é para todo mundo que deseja. Na minha metodologia, eu tento estimular as pessoas a mudarem de forma textual, de assunto, de corpo, de papel. Eu quero que as pessoas fiquem confortáveis experimentando porque literatura é feita de experimentação. Desautorizar uma pessoa de seus desejos é uma brutalidade.
Na cena da aula, esse professor não disse que não era para eu escrever poesia, mas foi isso que eu entendi e levei para mim. Ao longo dessa dita amizade de escritores, ele valorizava o que eu fazia, mas só quando estávamos a dois. Em público, era quase como se ele não me conhecesse. Nesse meio tempo, trocávamos escritos. Houve um momento em que estávamos escrevendo um texto juntos, um trabalho. Em determinado momento, eu digo a ele uma decisão que estou pensando em tomar a respeito do texto e ele ficou furioso: “não quero que meu texto fique ruim!”, e em seguida, disse: “ops, ato falho!” e riu. Quando contei isso a uma amiga ela riu e disse: “você está trabalhando de graça para esse sujeito”. Foi aí que eu resolvi sair dessa relação (obviamente fui feita de doida por ele, que insistia em não ser um abusador, sendo que eu jamais o chamei assim). Eu me sentia pequena perto dele, para conversar com ele eu tinha que me diminuir, me silenciar, me conter.
Por causa disso, fiquei um pouco traumatizada com a escrita de poemas. Até mesmo minha leitura de poesia ficou prejudicada: uma sensação de não poder acessar aquilo, de não pertencimento, de desautorização. Uma cristalização do meu ofício só porque um chato disse que eu não podia. Que valor nós damos para a palavra dos homens... Acho que toda mulher que escreve tem alguma experiência assim para contar (a caixa de comentários está aberta para você contar a sua, ou pode me escrever, se você quiser anonimato). Cheguei a publicar pequenas coisas de poesia, mas nunca mais escrevi com o prazer que tinha antes.
Salto para 2023. Organizei uma oficina com a poeta Lilian Sais aqui em Belo Horizonte: Segurar o poema com as mãos. Fui ser aluna também, animada para escrever uma coisa diferente, porque estava trabalhando em um romance chato. Em determinado momento do início da oficina, com muita simplicidade, Lilian disse: “ter um estilo único não me interessa. Eu busco experimentar”. Essa frase ajudou a simplesmente anular o que o poeta anterior tinha dito. Não era necessário ter apenas um estilo, uma linguagem, uma forma de fazer: a construção é múltipla. Eu estava autorizada de novo, a exclusão tinha acabado, eu podia participar daquilo.
Lilian nos chamou realmente para pegar os poemas com as mãos, a torná-los nossos, moldá-los, independente de que autora eram. Escrevemos vários poemas nessa oficina e fizemos exercícios de edição — não tem outras palavras — divertidíssimos, instrutivos, maleáveis. Além de tudo, houve uns toques muito impressionantes sobre pesquisa para escrever poemas que me fizeram abrir a paisagem da escrita poética.
De fato, o tom e o estilo da poesia da Lilian mudaram muito ao longo do tempo: desde o começo a considero uma poeta excelente, mas de um momento mais obscuro, sinto que a literatura dela fez um excelente salto para um humor que vinga e liberta. É lindo poder conviver com uma pessoa da qual os poemas parecem escorrer em liberdade, que em um momento faz algo difícil e duro, e em outros momentos faz coisas hilárias, altamente eróticas, filosóficas. Tenho certeza de que para a autora não é nada fácil escrever tanto, mas ver o voo de Lilian tem sido uma das melhores experiências estéticas do meu trabalho.
Em seu último livro, O livro do figo, Lilian Sais traz esse poema chamado “Oficina de poesia”:
— a verdade, Carlos, é que poesia é ficção
e um poeta deve conhecer seus personagens
saber responder perguntas sobre eles
talvez fazer o mapa astral de cada um
depois responder assim, ó:
o que ele ouve? o que ele lê?
o que ele faz
quando o titanic afunda?
Carlos, eu não entendo bem
por que você ri de mim
enquanto eu choro sem parar
toda vez que o titanic afunda
Identifiquei aí a minha experiência fatídica: porque se a gente for realmente honesto, quando a gente começa a escrever, a gente não sabe muito bem o que está fazendo. A gente apenas faz, vai e depois toma um tempo para refletir. A famosa regra da Irmã Corita Kent: “não tente criar e analisar ao mesmo tempo, são processos diferentes”. Esse poema também me faz lembrar de um ensaio fantástico e incendiário da Susan Sontag chamado Contra a interpretação, que ela termina com a frase: “em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”. Melhor deixar o choro vir quando o Titanic afunda.
Eu vinha querendo escrever sobre o meu processo de divórcio e sobre uma longa pesquisa que fiz sobre relacionamentos abusivos. Tentei na prosa: o texto seria um ensaio sobre todo o processo. Não dava pé de jeito nenhum. Até que comecei a levar a história para o lado dos poemas. Sempre tive muita dificuldade em escrever prosa sobre a minha vida pessoal, mas acabou que a poesia tem acolhido essa narrativa que tem sido uma bela de uma vingança, experimentando vários estilos e linguagem. Aqui, além de Lilian, outras amigas me acompanharam e me acompanham, e sou muito grata a elas pela escuta que não disputa espaço, mas que faz nascer.
*
Lilian Sais vai oferecer no próximo semestre uma oficina nas Estratégias Narrativas: se chama Narradoras de si e é de longa duração. Tem sido incrível trabalhar com ela e convido vocês também a se juntarem a nós. É para quem escreve, quer escrever ou escrevia e parou, para todo mundo que tem desejo
Este é um curso de leitura e escrita poética de longa duração. Em encontros semanais, ao longo de quatro meses, leremos poemas que foram escritos por mulheres a partir de uma (ainda que suposta) narrativa de si. Serão discutidos temas, procedimentos e ferramentas de composição poética. A partir disso, serão propostos, a cada aula, exercícios de escrita e de edição dos poemas que surgirem.
A partir disso, serão propostos, a cada aula, exercícios de escrita e de edição dos poemas que surgirem. Ao final, a proposta é que cada participante desenvolva um projeto individual de escrita, a caminho de uma publicação.
Ao longo da oficina realizaremos também três estudos de projeto de livros de poemas: o primeiro de as helenas de troia, ny, de Bernadette Mayer, o segundo Cidadã, de Claudia Rankine e o terceiro Garotas em tempos suspensos, de Tamara Kamenszain. Haverá também momentos em que apresentaremos nossos próprios projetos de plaquete ou livros de acordo com os exercícios propostos.
//
Oficina de longa duração:
17 de agosto a 30 de novembro
quintas-feiras, 19h-21h
24 horas/aula
participantes: mínimo 8, máximo 16
valor: R$960 ou 4xR$290,00
Oficina online pelo zoom
as aulas serão gravadas e disponibilizadas aos participantes até o fim da atividade.
Inscrições
por e-mail em: estrategiasnarrativas@gmail.com
formulário de inscrição na nossa descrição
ou
whatsapp: (31) 99941-6546
fico feliz que a Lilian desfez o feitiço ruim desse bóe-lixo! estou curiosa pra ler esses poemas de vingança, viu.