Uma vez participei de um evento público em que havia na mesa uma pessoa pessimista. Ela dizia o velho discurso do artista desacreditado: ninguém lê no Brasil, ninguém se interessa por arte e cultura, perdi as esperanças etc. Quando chegou a minha vez de falar, eu coringuei. Falei: poxa, então por que você (era uma pessoa que tinha recursos para tal) não funda um curso livre de literatura, não cria uma biblioteca itinerante, nós temos que parar de reclamar e fazer o trabalho, ele pode não levar a nada do que idealizamos, mas temos que fazer o trabalho todos os dias.
Na performance do pessimismo, existe um charme, um ar cool, um “não acredito no mundo” com um cigarro aceso entre os dedos e uma boina preta na cabeça. A imagem desse artista meio romântico, meio marginal não me convence — principalmente quando o marginal em questão é um professor universitário, uma pessoa com recursos financeiros e psíquicos, uma pessoa que poderia somar, mas prefere estar nessa performance derrotada. Chamo isso de Pessimismo Estético, e acho muito cafona.
O Pessimismo Estético é essa desesperança do intelectual que já fez de tudo e não obteve os resultados que queria (um reconhecimento idealizado, uma certa quantidade de aplausos e prêmios), uma grande frustração chorosa diante da falta de alcance de seu esforço individual. A vida é assim, meus caros, ela te frustra, trabalhar às vezes é um saco, a gente que é artista se mata, mas não deveria ser assim. As pessoas entram nessa performance do Pessimismo Estético sem pensar, por repetição, porque essa é a postura charmosa do artista. Inclusive, já vi minha energia ser caçoada e infantilizada por essas pessoas: olha que gracinha ela lutando pela arte.
No seu quartinho escuro de escrita, entre seus livros, você realmente pode pensar isso: e realmente, trabalhar com arte e cultura é um sacrifício no Brasil, é duro. Há forças terríveis tentando nos destruir o tempo todo, seja por ressentimento ou falta de compreensão do que fazemos. Mas em público, acho que a gente jamais tem o direito de fazer uma performance da perda da esperança. Estou aqui com o meu trabalho: eu o fiz, ele é meu, ele é nosso. Ainda tem uma turma do contra que realmente quer destruir o trabalho que a gente faz (ah, quantas fofoquinhas eu já ouvi por aí) por puro ressentimento, uma verdadeira necessidade de destruir o que a gente constrói a duras penas simplesmente porque o tal fulano se frustrou com o próprio trabalho.
Essa semana dei uma surtada no instagram falando que eu estava muito cansada de ter que defender a arte, ter que convencer as pessoas de que ela é necessária, de ter que falar contra o desmonte de coisas importantes. Entretanto, o pior para mim é ter que falar com os próprios trabalhadores da arte para eles tirarem o dedo do rabo e defenderem o que tem que ser defendido, uma vez que o discurso corrente é “está tudo ferrado mesmo, por que vou me preocupar?”. É uma perda da coletividade, tão importante para uma sociedade saudável.
Talvez eu esteja sendo um pouco inocente, aqui do alto dos meus privilégios, mas eu lutei muito para criar um espaço em que as pessoas possam escrever de maneira livre e simultaneamente séria, e para criar um espaço em que eu mesma pudesse escrever. Vou contar umas historinhas pessoais para me fazer entender.
Toda a infância e adolescência, estudei em uma escola bastante fascista, apesar de cara e muito renomada. Nessa escola, teve um tempo em que os alunos poderiam fazer cursos extras de teatro, música, futebol, entre outros; no entanto, caso o aluno participante desse curso perdesse uma média, ele seria tirado das atividades extras. Foi o que aconteceu comigo: pude frequentar a aula de teatro por duas semanas e depois da primeira média perdida em matemática, fui privada da arte porque precisava estudar “as coisas sérias” com mais esforço. Essa hierarquia me matou: o que eu mais amava, o que me fazia humana era colocado como perfumaria, e me deixava preguiçosa para fazer os deveres importantes. Os cursos de arte foram descontinuados, mas a escolinha de futebol continua firme e forte até hoje (notem meu ressentimento com relação aos valores…).
Os anos se passaram e essa escola me adoeceu profundamente. Na ideologia interna, havia as matérias sérias e as matérias de perfumaria, e a perfumaria era justamente o que eu amava: português, literatura, artes, música. Fui caindo, e acho que o que me salvou foi escrever. Eu escrevia compulsivamente, a maior parte do tempo, eu lia sem parar, pegava livros na biblioteca me sentindo uma subversiva porque a escola jamais incentivava que fizéssemos algo para além do controle da diretoria. Tem gente que diz que a arte não salva ninguém (alerta de Pessimismo Estético), mas ela salvou e me salva até hoje de mim mesma e do mal do mundo.
Aos quinze anos fiz um trato comigo: a literatura é a coisa mais importante da minha vida, é a minha missão, e escrever é a principal coisa que eu vou fazer; nessa época, era a única coisa que eu tinha. Comecei a fazer psicanálise logo depois, o que para mim também é uma arte da palavra: a cura pela fala se aproxima muito da cura pela escrita. E penso numa cura que não é a cura de uma doença apenas, mas na cura em sua forma mais ampla: a cura de uma exposição, do espírito, a maturação de um alimento. A psicanálise também é um trabalho do paciente, é um custo sentar no divã escarafunchar a cabeça. Gosto muito de pensar no trabalho como uma realidade humana, o que torna ainda mais criminoso o que o capitalismo faz com os trabalhadores, sugando até a última gota de energia, uma energia que deveria ser usada para nosso pleno potencial criativo.
Levando todas essas questões para a análise essa semana, meu analista muito esperto sugeriu: da mesma forma que você tem que proteger a arte o tempo todo, a arte te protege.
O pessimismo tem o ganho da acomodação e, às vezes, até financeiro. O Safatle, por exemplo, fala que a esquerda morreu, fala de dar vazão à melancolia, pra vender seus livros como "maneiras de transformar o mundo". O pessimista se vende como solução.
Ainda bem que eu também fiz esse pacto comigo mesma aos quinze anos, a idade onde tudo é infinito, como disse o Machado de Assis. E ainda bem que nos meus vinte anos eu te conheci e minha vida mudou. Obrigada por proteger a arte e por tudo que você faz por todes nós sempre. Viva vc, amiga ❤️