Quero começar uma série aqui sobre a questão da arte e do trabalho, um dos assuntos favoritos dessa capricorniana. Como vi que outro dia foi aniversário do Rafael Martini, vou começar por um insight que tive num concerto dele
No último concerto do Rafael Martini, com uma participação especial espetacular da Mônica Salmaso, aconteceu uma coisa que pode parecer ruim, mas que eu adoro presenciar. Os músicos subiram ao palco e começaram a tocar. No caso do concerto Martelo, há uma formação pouco usual e muito interessante: violino, violoncelo, piano, eletrônica, bateria, clarone, clarinete*. Ao início da música, houve um estranhamento: a plateia se inquietou, faltava algo. Então, o Rafael pediu para parar, sinalizou: o microfone do violino estava com problema.
Interromperam o concerto, foram arrumar o microfone, demoraram menos de cinco minutos, e voltaram a tocar. Lembro que o Rafael disse algo como: “a gente fica morrendo de medo de dar errado, então quando dá errado, a gente pode relaxar”. Foi absolutamente maravilhoso, mas sou suspeita, aqui em casa ouve-se o disco Martelo do Rafa no repeat. Ao fim, houve aquela lista de agradecimentos e o Rafael disse: “por trás disso aqui tem muito trabalho”.
Quando houve o erro do microfone e uma grande mobilização para consertá-lo, comecei a reparar na quantidade de cabos, estantes e parafernália sobre o palco. Alguém colocou aquilo ali, alguém organizou os fios, os músicos estudaram muito, as pessoas compuseram as músicas, editaram partituras, havia a iluminação, os ingressos, tudo. O erro simples do microfone deixou evidente todo o trabalho por trás de um espetáculo. É um momento que eu adoro, no qual agradeço silenciosamente àqueles que estão ali tocando. Agradeço a humanidade de seus trabalhos.
O momento do erro nos permite ver o trabalho que há por trás de uma arte. Existe o mito romântico — ou até mesmo arcaico — do gênio que veio gênio, abençoado das musas, que não teve que trabalhar para aquilo. Um dos muitos motivos para o acontecimento desse mito é a falta de consciência que as pessoas têm do trabalho que há por trás de um ofício, ou até mesmo a ocultação desse trabalho pelos próprios artistas e objetos de arte. Mas quando alguém queima o arroz, quando arranham o carro, quando a manicure tira um bife, quando esquecemos um balde com produto de limpeza para trás, quando a máquina desliga e não nos lembramos de estender a roupa: são trabalhos que só parecemos notar quando há um erro. Quando ele se conclui: não fizemos mais que nossa obrigação. Claro, há o reconhecimento dos acertos, os elogios aos feitos excepcionais, mas eles parecem pesar tão menos no campo do significado do trabalho...
Muita gente não escreve por medo de errar. Desde os erros gramaticais (um pânico que nos faz lembrar de nossos professores violentos, intolerantes com tudo que não é norma culta), ou o medo de errar um texto no tom, na linguagem, no enredo. Vejo gente escorregando no estilo para não escorregar na norma e o texto fica estranho. Muitas pessoas têm até mesmo medo de parecerem ridículos escrevendo (esse medo me acomete todos os dias). Entretanto, o erro é o trabalho, e a natureza do trabalho é ser difícil, até quando é a arte pode ser um prazer em si. Talvez o prazer venha em justamente consertar o erro, olhar para ele, reconstruir, ou passar por cima do erro, abordá-lo, costurá-lo.
Nisso, adoro encontrar erros nos livros publicados. É triste, mas assim que percebo um erro, já interrompo a leitura e começo a pensar na cadeia de pessoas que trabalham para que aquele livro saia. Quem escreve, quem prepara, quem edita, quem traduz, quem revisa, quem imprime e distribui: são seres humanos e mortais, cujos nomes às vezes aparecem nas fichas catalográficas, às vezes não. Pessoas, com suas vidas, necessidades, personalidades. O livro é feito da carne de muitos corpos.
Há um demônio medieval que continua na ativa até hoje. Ele se chama Titivillus. Titivillus fazia os copistas, monges em sua maioria, errarem na cópia de palavras sagradas, roubando letras, debochando da palavra divina. Hoje em dia, acho que o Titivillus ocupa gráficas e editoras, engolindo nossas letras, duplicando-as, destruindo os detalhes do nosso trabalho concentrado. Lá no Estratégias Narrativas tenho um quadro do Titivillus: quando ele anda muito atacado, produzindo erros demais, colocamos umas moedinhas sobre a imagem para que ele nos devolva as palavras com o peso dos metais.
Para concluir essas notas de erros, trago também o ato falho, talvez o mais poético dos erros. Tenho orgulho de mim mesma porque, certa vez, fui falar das obsessões de João Cabral de Melo Neto e chamei o pobre do autor de João Cabral de Melo Método. Ficou assim, não chamo mais de outro jeito: o ato falho resume o poeta. No ateliê de escrita, costumamos ler os textos em voz alta. Muitas vezes, quem está lendo comete algum erro: troca palavras, ordens, tempos verbais, coloca algo que não estava ali. Costuma acontecer comigo também, lendo textos dos alunos. Quando isso acontece, escrevo AF no canto da folha, e quando terminamos a leitura, trago o erro. Na metade dos casos, quem escreveu tem a bondade de aceitar os supostos erros e assumir aquilo que falou, que estava oculto, que se revelou. Foi um erro, mas é verdadeiro.
*posso ter errado algum um instrumento ou esquecido de outro, mas enfim, errar é humano.
Muito boa e inspiradora sua reflexão. Adorei especialmente isso: “… o erro é o trabalho, e a natureza do trabalho é ser difícil, até quando é a arte pode ser um prazer em si.”
Muito boa essa reflexão, Laurita! Parabéns por esse espaço, adoro ler você! 😘